Foto: Juan Carlos Tomasi/MSF
Por Matthias Kennes, enfermeiro registrado e médico referente da resposta de MSF à COVID-19 em Hebron, Cisjordânia
“Como profissional de saúde, estou chocado. O sucesso da vacinação de Israel contra a COVID-19, aclamado internacionalmente, tem um lado oculto, cujas consequências são cruelmente sentidas no território palestino da Cisjordânia, onde trabalho, e na Faixa de Gaza, sob bloqueio israelense, onde meus colegas de Médicos Sem Fronteiras (MSF) trabalham.
Israel conseguiu vacinar quase 4,2 milhões de pessoas com a primeira dose – o equivalente a 50% da população – e 2,8 milhões de pessoas com as duas doses completas – ou seja, mais de 30% da população. Enquanto isso, somente alguns milhares de doses estão disponíveis na Cisjordânia, e uma remessa de 20 mil doses que chegou a Gaza no último fim de semana mal atende às necessidades locais. Supondo que as 35 mil vacinas Sputnik e Moderna estejam realmente disponíveis, isso representaria cerca de 0,8% da população palestina. Para ser mais claro, a probabilidade de você ser vacinado em Israel é 60 vezes maior do que na Palestina. Israel tem a responsabilidade, como potência ocupante, de garantir o abastecimento médico da população ocupada, incluindo “a adoção e a aplicação de medidas profiláticas e preventivas necessárias para combater a propagação de doenças contagiosas e epidemias” em “toda a extensão dos meios disponíveis para isto.” Vim para Hebron com uma equipe de MSF para ajudar especificamente na resposta à COVID-19. Em dezembro do ano passado, quando a segunda onda atingiu a Cisjordânia, o hospital Dura, onde apoiamos a oferta de assistência médica, estava lotado de pacientes de COVID-19. A maioria era idoso, muitos com doenças subjacentes, como diabetes ou outras doenças crônicas. Os pacientes morreram. Pacientes contaminados pela COVID-19 morreram em hospitais do mundo inteiro, mas esses pacientes morreram sob minha supervisão, e isso me dói. Em oito das 11 províncias da Cisjordânia, o número de casos de COVID-19 está aumentando novamente. Em Hebron, esse aumento tem sido lento, mas constante, nas últimas quatro semanas. Não quero ver mais nenhum paciente morrendo por falta de oxigênio. A vacina é a minha esperança de isso ser evitado. Também é uma fonte de desespero. A poucos quilômetros, em Israel, todos os grupos vulneráveis foram vacinados e, agora, estão planejando vacinar adultos e jovens saudáveis, que são menos vulneráveis, especialmente a complicações graves. Aqui na Cisjordânia, existem cerca de 10 mil doses, o que é suficiente para que 5 mil pessoas sejam vacinadas. No hospital onde trabalho, a vacina foi oferecida aos funcionários, mas as doses disponíveis não chegam nem perto de conseguir proteger todos os profissionais de saúde, muito menos os idosos e as pessoas com problemas de saúde que os tornam suscetíveis a morrer de COVID-19.
Publicidade
continuação da matéria…
Se perguntarem por que pessoas vulneráveis não podem ser vacinadas na Palestina, não sei como responder. É inexplicável e inacreditável. Pior do que isso – é injusto e cruel.
Ouvimos informações sobre vacinas adicionais que chegam à Palestina por meio de vários mecanismos de doação, mas elas não estão aqui agora. E, a meia hora de carro, Israel tem pilhas de vacinas e está começando a vacinar grupos não vulneráveis. Estou indignado, mas meus colegas em Gaza estão ainda mais. Nem sempre foi fácil, mas o hospital Dura, em Hebron, onde tenho trabalhado, conseguiu a maior parte dos suprimentos necessários para responder à COVID-19, e a equipe de MSF conseguiu fornecer orientação e treinamento para impulsionar a capacidade da equipe de tratar pacientes graves e críticos – todos com necessidade de receber oxigênio. Mas, em Gaza, há uma escassez muito mais severa de suprimentos médicos e farmacêuticos, porque o bloqueio é muito rígido. A capacidade de tratamento de COVID-19 lá é menor, portanto, a necessidade da vacina é ainda maior. E a recente entrega de 20 mil vacinas não será suficiente para proteger os profissionais de saúde e as pessoas mais vulneráveis que precisam de cuidados médicos essenciais contra a COVID-19. Israel é uma potência ocupante e tem milhões de vacinas. A Palestina é o território ocupado e tem apenas alguns milhares de vacinas. Como profissional de saúde, não me importa quem resolverá isso. Como profissional de saúde, me preocupo profundamente que os mais vulneráveis sejam priorizados. Fico com este pensamento vergonhoso ecoando em minha mente – 60 vezes mais probabilidade de ser vacinado em Israel do que na Palestina, com os palestinos mais vulneráveis ainda desprotegidos…”
Publicidade
continuação da matéria…
¹ Quarta Convenção de Genebra.
O artigo acima reflete as opiniões de seu autor, que tem liberdade para expressar-se de maneira pessoal, utilizando termos que não necessariamente seriam os mesmos adotados em caráter oficial por Médicos Sem Fronteiras. A organização, entretanto, tem chamado a atenção de maneira reiterada para a necessidade de dar prioridade a pessoas mais vulneráveis na imunização contra a COVID-19.
Temos feito insistentemente críticas gerais à desigualdade no acesso a vacinas e nos pronunciado publicamente sobre a necessidade de os países ricos que estão mais avançados em suas campanhas de vacinação participarem de iniciativas para que ao menos profissionais de saúde, idosos e pessoas com comorbidades possam ser imunizados em países mais pobres.
Uma maior equidade no acesso a vacinas e medicamentos é uma demanda humanitária histórica de MSF, que precede o contexto atual da pandemia, mas que ganhou ainda mais relevância pela emergência da COVID-19.
Desde 1989, Médicos Sem Fronteiras atua na região da Palestina. Nossos projetos estão direcionados à prestação de cuidados médicos e de saúde mental à população palestina. Embora neste momento não tenhamos projetos que atendam à população israelense, estamos sempre disponíveis caso haja alguma demanda emergencial neste sentido.
Em todas os projetos onde atuamos trabalhamos de maneira neutra, imparcial e independente, sem qualquer atrelamento a poderes políticos, militares, econômicos ou religiosos.