Publicado por: Marcelo José de Sá Diretor-Presidente e Editor-Geral do Site do Jornal Espaço

O que acontece quando a lei acerta – e as pessoas ainda se sentem injustiçadas? O que acontece quando alguém morre e o tribunal declara que foi um acidente, mas o irmão da vítima não consegue dormir à noite porque o homem que causou sua dor anda livre? Os capítulos finais de Números confrontam essa questão de frente. Enquanto os Filhos de Israel se preparam para entrar na terra, a Torá estabelece um mecanismo legal antigo e surpreendentemente relevante: arei miklat, cidades de refúgio para a pessoa culpada de homicídio culposo.
Por que razão a justiça às vezes não traz a paz?
A Torá entende que em um mundo de tribos e famílias, de honra e tristeza, a verdade nem sempre é suficiente para acalmar o coração humano.
לִבְנֵי יִשְׂרָאֵל וְלַגֵּר וְלַתּוֹשָׁב בְּתוֹכָם תִּהְיֶינָה שֵׁשׁ־הֶעָרִים הָאֵלֶּה לְמִקְלָט לָנוּס שָׁמָּה כָּל־מַכֵּה־נֶפֶשׁ בִּשְׁגָגָה׃
Essas seis cidades servirão aos israelitas e aos estrangeiros residentes entre elas como refúgio, para que qualquer um que matar uma pessoa sem querer possa fugir para lá.
Números 35:15
A lei distingue claramente entre assassinato e homicídio culposo. Mas não para por aí. A pessoa que mata involuntariamente é exilada – não por um ano, não até que seu caso seja julgado novamente, mas até a morte do kohen gadol, o Sumo Sacerdote.
É aí que as coisas ficam interessantes.
Por que o exílio do homicida dependia da morte do Sumo Sacerdote? O que um tem a ver com o outro? O rabino Jonathan Sacks z”l explorou duas abordagens radicalmente diferentes, extraídas dos poços mais profundos do pensamento jurídico e filosófico de nossa tradição. Um vem do Talmude Babilônico, o outro de O Guia para os Perplexos de Maimônides – e entre eles está uma divisão fundamental em como entendemos a justiça, a liderança e a psique humana.
De acordo com o Talmud, o Sumo Sacerdote tem alguma responsabilidade espiritual pelo clima moral de sua geração. Se ele tivesse orado com mais fervor, com maior sinceridade, a morte acidental poderia nunca ter acontecido. Seu fracasso não é criminoso – mas é real. Sua morte se torna o momento da expiação, a válvula de escape para uma tragédia que não tem ninguém para culpar e ainda não pode passar despercebida. A pessoa no exílio sofreu, o Sumo Sacerdote morre, e só então podemos dizer: a balança moral se equilibrou. A justiça, nessa visão, requer fardo compartilhado – mesmo quando ninguém é culpado.
Maimônides não acredita. Em O Guia para os Perplexos, ele tira o misticismo e lê o verso através da natureza humana. O exílio não é sobre culpa, ele argumenta. É sobre segurança. O homicida não pecou; Ele cometeu um erro terrível, e a família da vítima pode não estar pronta para ouvir isso. Então ele foi removido de vista. Ele permanece na cidade de refúgio até que o Sumo Sacerdote morra – não porque o Sacerdote seja o culpado, mas porque sua morte é um momento de luto nacional, uma espécie de reinicialização emocional. Quando a nação está de luto junta, as vinganças individuais perdem sua vantagem. O sangue ainda é derramado, mas o fogo da vingança se apaga.
Essas duas visões não poderiam ser mais diferentes.
Vê-se o mundo através das lentes da responsabilidade espiritual: a oração é importante, os líderes carregam peso moral e a culpa invisível pode se espalhar por uma nação. O outro vê o mundo através da psicologia: o exílio é sobre esfriar os ânimos, a dor é suavizada pela tristeza coletiva e a justiça funciona melhor quando se alinha com a forma como as pessoas realmente se comportam.
Ambos são Torá.
Mas a verdadeira questão não é apenas sobre o Sumo Sacerdote – é sobre como entendemos a lei e a liderança hoje. Um líder é responsável pelo que acontece sob sua supervisão, mesmo quando não o causou? A segurança comunitária requer sofrimento compartilhado? Ou buscamos políticas enraizadas na psicologia da paz, mesmo quando elas não parecem justiça?
O rabino Sacks apontou que essa tensão – entre o sobrenatural e o natural, o sacerdotal e o filosófico – é profunda no pensamento judaico. O místico e o racional não são inimigos, mas são maneiras diferentes de se envolver com as mesmas verdades eternas.
Justiça não é um sentimento. Mas os sentimentos podem minar a justiça.
A Torá, em seus capítulos finais, não oferece apenas leis. Isso nos dá um espelho. E nesse espelho vemos uma verdade que nem sempre queremos enfrentar: às vezes, a parte mais difícil da justiça não é determinar a culpa. É saber o que fazer com o luto.
Sara Lamm
Sugestão de pauta ou denúncias é só enviar no e-mail: redacao@jornalespaco.com.br
Contatos de Reportagens e Marketing:
62 9 9989-0787 Vivo
62 9 8161-2938 Tim
62 9 9324-5038 Claro
Instagram: @Jornal Espaço