quarta-feira - 04 - dezembro - 2024

Mundo / Guerras / Violência Contra Mulher / Estupro de Guerra: O estupro como arma de guerra; barata, eficaz e amplamente tolerada

Publicado por: Marcelo José de Sá Diretor-Presidente e Editor-Geral do Site do Jornal Espaço

Não bastassem os estupros sem punição, altamente protegidos nas zonas de interesse masculino, em conflitos armados eles são armas de destruição em massa – e ainda humilham o inimigo, no caso as inimigas, já que 94% das vítimas de violência sexual na guerra são meninas e mulheres.
De acordo com dados oficiais apurados pelas Nações Unidas, só em 2022 foram registrados 55 conflitos armados em 38 países. Atualmente esse número já é significativamente maior e na maioria deles o estupro e a violência sexual vêm sendo usados como uma arma de destruição em massa, uma arma barata mas terrivelmente eficaz. De acordo com o último relatório da ONU de 2023, mulheres e meninas representam 94% das vítimas.São táticas de guerra que utilizam a sexualidade como meio para destruir e tomar o poder. Tão antiga quanto as guerras é a violação sexual que a elas se seguem, revelando estratégias bélicas amplamente toleradas, estimuladas e dificilmente documentadas, fazendo das mulheres suas vítimas preferenciais. Alguns exemplos recentes:Uso do corpo de mulheres como um artefato integrado a um arsenal de guerra com o objetivo de dominar territórios – como fazem atualmente os soldados russos na guerra contra a Ucrânia. Violência sexual como ferramenta de limpeza étnica, como testemunhado nos casos de combatentes sérvios contra mulheres mulçumanas, nos “campos de estupro” da Bósnia, mesma finalidade das violações sistemáticas incentivadas por líderes políticos e militares hutus, como caráter instrumental para o genocídio do grupo étnico tutsi, em Ruanda.

Destruição do corpo de mulheres para controlar populações ou como forma de terrorismo, como atestado no Iraque pelos combatentes do ISIS contra as mulheres Yazidis, mesmo modus operandi empregado pelo Boko Haram contra as meninas nigerianas, com o objetivo de estabelecer um controle islâmico em regiões da Nigéria ou, mais recente ainda, as violações perpetradas pelo Hamas contra as reféns israelenses.

O uso bárbaro da violência sexual em conflitos armados é também empreendido com a finalidade econômica, como por exemplo para provocar o deslocamento forçado da população de áreas mineráveis ricas em ouro e cobalto, na República Democrática do Congo e na República Centro Africana.

Práticas que até bem pouco tempo não despertavam grandes interesses políticos ou jurídicos, de modo que a própria menção a esses fatos é raramente encontrada nos julgamentos dos principais conflitos armados da história. Exemplo claro desta omissão são as experiências do Tribunal de Nuremberg, que se manteve silente sobre o tema, embora tenham sido cometidas notáveis violações contra mulheres durante a Segunda Grande Guerra.

Neste contexto histórico, o estupro sistemático de mulheres, embora comum em regiões de conflitos armados, permaneceu por muito tempo à margem das preocupações do Direito Humanitário e do Direito Penal Internacional. O caráter expressivo das violações, as agressões físicas e morais dirigidas não somente às mulheres em suas individualidades, mas também ao grupo ao qual elas pertencem, como forma de demonstração de poder e domínio, só passaram a ser alcançados por normas internacionais após um lento processo, permeado pelos debates feministas a partir da segunda metade do século 20, que incorporaram o gênero como categoria de análise e estimularam a publicização das atrocidades praticadas.

A concepção dessa realidade, como manifestação de um poder que se estabelece sobre um povo e se inscreve nos corpos de suas mulheres, só se tornou evidente com a massiva ampliação do estupro como mecanismo de limpeza étnica e política de genocídio, nos grandes conflitos da década de 1990 e do conseguinte trabalho dos Tribunais Penais Internacionais de Ruanda e da ex-Iugoslávia, ao reconhecerem que a violência sexual pode ser elemento caracterizador de atos de tortura ou genocídio.

Foram as experiências daqueles julgamentos que geraram precedentes fundamentais no processo de garantir a visibilidade e a punição dos crimes de estupro nas regiões de conflitos armados, conquista que aproximou a justiça de seu objetivo de proteger a paz, os direitos humanos e de garantir às mulheres especial proteção, em virtude de sua condição de vulnerabilidade histórica causada pelas assimetrias de gênero.

A violência sexual, em todas as suas formas, foi somente tipificada como crime contra a humanidade com a assinatura do Estatuto de Roma, em 1998. O Tribunal Penal Internacional passou a identificar estupro também como crime de guerra em 2016, ao condenar o ex-vice-presidente da República Democrática do Congo, Jean-Pierre Bemba Gombo.

A partir dos anos 2000, o Conselho de Segurança da ONU passou a emitir uma série de resoluções no escopo da agenda Mulheres, Paz e Segurança. Dentre tais resoluções, cinco delas são destinadas a discutir especificamente a violência sexual em conflitos armados. Fato que pode ser considerado paradigmático, pois sabe-se que esse é o único órgão da organização que emite decisões vinculantes mas, em razão disso, é um espaço insulado, de pouca permeabilidade à sociedade civil e à maioria dos Estados, sendo o poder de veto restrito apenas aos membros permanentes.

Apesar de toda evolução da legislação internacional este terrorismo prospera, os dados são subnotificados e muitos ignorados. A penalização é ineficiente e pouco dissuasiva porque reina a impunidade. Uma das dificuldades é saber a extensão da violência sexual nestes conflitos ou zonas de crise. Qual é o número exato de vítimas? Qual é o modus operandi? A investigação e a coleta de provas para documentar os abusos sofridos é difícil, visto que estamos diante de territórios hostis e inseguros. Essa conjuntura pode ser ainda piorada quando os autores dos crimes são também membros institucionais do governo, quando fazem parte do exército ou das autoridades policiais locais. Obviamente, neste tipo de território, não haverá uma colaboração das autoridades e os investigadores internacionais nunca serão bem-vindos.

Nas regiões de Tigray, na Etiópia, as mulheres são violadas quase sistematicamente pelos combatentes. Uma brutalidade que atinge dezenas países como Guiné, Eritreia, Sudão, Iêmen, Líbia, Somália, Síria, Iraque, Haiti, República Democrática do Congo, Serra Leoa, Afeganistão e mais recentemente Ucrânia e Israel. Essa violência não tem cultura, não tem religião e não tem fronteiras. É um efeito sintomático de decadência da sociedade humana.

Apesar da jurisdição internacional permitir a criminalização, esta é uma violência que permanece, em grande parte, impune. Para dar um fim a toda essa impunidade é preciso antes de tudo dar um fim ao silêncio. Quando penso nessa forma de abuso, a imagem que me vem à cabeça é a de um cervo tentando se esconder num campo de caça esportiva. Estamos falando da violação mais pessoal e íntima que se possa imaginar, e no entanto o caçador nunca será punido. O estupro é o crime menos denunciado de todos – e o estupro em conflitos é ainda menos.

Quando lemos essa narrativa na segurança das nossas casas parece um problema distante. Entretanto uma grande parte dessas vítimas acreditava que isso jamais aconteceria com elas. Esse não é um problema local, é um problema global, como o fogo que começa numa floresta distante e arrasa cidades inteiras. Enquanto nós mulheres nos mantivermos em silêncio, seremos cúmplices dessas crueldades.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Site Jornal Espaço

Daniela Kallas

Daniela Kallas. Advogada, Head Relaçoes Institucionais e Novos Negócios na Polvo Lab, conselheira do SHE Institute, voluntária e embaixadora da Volunteer, Daniela é graduada em Direito pela Faculdade Milton Campos (1998), pós-graduada em Direito Internacional Público pela Universidade Paris I – Panthéon/Sorbonne (2002), mestre em Direito Europeu e Internacional pelo Instituto de Direito Comparado da Universidade Paris II – Panthéon/Assas (2004), pós-graduada em Direito Societário pela Universidade Mackenzie (2012) e pós-graduada em Ciências Humanas: Sociologia, História e Filosofia, pela PUC-RS (2023). É coautora do livro “As faces da violência do indivíduo ao Estado”.

 

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