“Tem sido muito avassalador. Pacientes jovens sendo internados. Eu não imaginava viver algo assim”, diz médica Rayssa Ferreira Foto: Reprodução
No momento mais crítico da pandemia até agora, profissionais da saúde relatam rotina exaustiva, cansaço mental e físico no enfrentamento da Covid-19. Tudo isso em meio a uma estrutura precária, com salas improvisadas para internar e cuidar de pacientes. “A gente nunca viu tantas mortes em tão pouco tempo”, diz uma enfermeira. Familiares relatam a dor da perda de entes queridos pela doença
Géssica Veloso
Após um ano do registro do primeiro caso de infecção por coronavírus no estado, o Brasil e Goiás vivem o pior momento da pandemia, com recordes de mortes a cada dia e fila de espera por um leito de UTI. Em 12 meses, já foram contabilizadas quase 450 mil pessoas contaminadas pelo coronavírus em Goiás e rompemos a trágica marca de 10 mil mortes causadas pela Covid-19.
Enquanto esta reportagem era finalizada, em 24 horas foram registradas 15 mortes e mais de 3.500 infecções pelo vírus, que está mais agressivo, em Goiás. Já nas últimas semanas a taxa de ocupação de leitos de UTI chegou a 99%. Em quase três meses, menos de 5% da população do Estado foi imunizada e não há previsão de novas doses suficientes para atender a população.
Enquanto o sistema de saúde caminha para o colapso, na ponta do atendimento, cansaço e adoecimento são palavras que definem a situação de milhares de trabalhadores da saúde em Goiás. O portal Notícias Goiás conversou com profissionais que relatam fadiga, provocada pelo excesso de trabalho e medo por ter que lidar com uma doença ainda desconhecida.
“Aqui no hospital temos feito roda de conversa e é muito triste o que ouvimos, são pessoas gritando por socorro, pessoas que estão mal, cuidando de outras pessoas, mas com aquela fragilidade de que, se a gente não vier, as pessoas morrem, é uma responsabilidade gigante. Eu não estou bem”, desabafou uma enfermeira, que há 15 anos trabalha na rede pública de saúde e pediu para não ser identificada.
A enfermeira revela que a maioria dos colegas precisa se equilibrar em dois empregos, devido à baixa remuneração. Além disso, segundo ela, o desgaste provocado pelas longas horas de trabalho é tão grande que as horas de descanso não são suficientes.
Ela conta que a equipe técnica trabalha 44 horas para receber R$ 1.500, já um enfermeiro de nível superior ganha na faixa de R$ 4 mil.
“O equipamento machuca muito, ficar 12 horas com equipamentos é triste, têm áreas da assistência que não pode tirar o equipamento, então a máscara dói, machuca o rosto, às vezes são três camadas de roupas e é muito quente, principalmente quando estamos fazendo algum procedimento que exige trabalhar com o corpo, como a reanimação. Às vezes o paciente está tão grave que não podemos nem descansar e uma hora de descanso é muito pouco para 12 horas e o corpo não entra em repouso pra gente entrar em sono. A gente não consegue”, desabafou.
A enfermeira comenta ainda que muitas vezes não dá tempo para comer, beber água, ir ao banheiro.
“A gente fica segurando, já tive infecção de urina várias vezes. É tenso e nunca foi tão ruim, porque a gente trabalha sob uma pressão gigantesca”, completou.
A profissional de saúde diz ainda que muitos precisam se desdobrar por falta de mão de obra e insumos.
“Tenho mestrado, a gente estuda tanto e nem sempre é possível aplicar tudo o que temos de conhecimento, devido à falta de infraestrutura e mais servidores, principalmente no serviço público. Tem um ano que estamos trabalhando no limite. A gente sabe que quando chegar no plantão você vai ter que trabalhar por três, quatro colegas que estão doentes. A gente faz porque não vamos deixar o paciente morrer”, relata a enfermeira.
A falta de leito também tem afetado a saúde emocional dos profissionais da linha de frente. Goiás já registrou 99% de taxa de ocupação de leitos de UTI e na capital o índice de ocupação chegou a 100%. Isso impõe aos profissionais uma realidade terrível: ver que não podem atender pessoas que estão precisando urgentemente de atendimento. A enfermeira contou que já presenciou casos em que a equipe esperou um idoso morrer para poder atender uma paciente gestante.
“Por tudo isso, a gente faz um apelo para a população: quando a gente pede para as pessoas ficarem em casa, se cuidarem, é porque não tem vaga mesmo, e não temos esse poder de decidir quem salva”, conclui.
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“Não temos mais onde internar”, diz médica
O portal Notícias Goiás também conversou com a médica Rayssa Ferreira Diniz Fernandes, de 28 anos. Com especialização em clínica geral, ela trabalha na Unidade de Pronto Atendimento Flamboyant, em Aparecida de Goiânia, e conta que a cada novo plantão está vivendo “situações cada vez piores”.
“Tem sido muito avassalador. Pacientes jovens sendo internados. Eu não imaginava viver algo assim. Nenhum colega médico imaginava viver essa pandemia. A cada novo plantão, um cansaço diferente, porque lidamos com internações, falta de leitos, com o desespero dos familiares”, desabafa.
Rayssa conta que recentemente perdeu a avó, vítima de Covid-19.
“Eu sei bem o que é estar do outro lado, sei bem o que é ter um familiar passando por tudo isso, isso traz um cansaço mental muito grande, é um desespero, e a gente está de mãos atadas, sem saber o que fazer, porque não depende da gente. Não temos mais onde internar. E isso traz uma certa frustração para a gente”, diz.
Ela completa dizendo ainda que, em muitas situações, salas são improvisadas para internar e cuidar dos pacientes.
“Você vê um paciente piorando cada vez, e às vezes não conseguimos dar o suporte que ele precisa. E a gente tenta dar um jeito, interna onde dá, nas outras salas, essa tem sido a nossa realidade. Lidar com perda das pessoas, por mais que tenha sido constante, é muito ruim. Internar um paciente e saber que o familiar dele não vai ver ele mais, não terá a oportunidade de se despedir, fazer um velório”, desabafa.
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“Chego em casa e não consigo me desligar”, revela psicóloga
A psicóloga Sara Pires, de 30 anos, trabalha 16 horas por dia para cumprir a jornada em dois hospitais na capital. Em um deles, ela atua na linha de frente no combate à Covid-19, atendendo pacientes que estão em tratamento na UTI. Conta que no início da pandemia faltou material de proteção e que notou aumento no número de mortes e caos.
“É muito cansativo. No início não tinha máscara. Agora nós estamos exaustos com o aumento da demanda. Chego em casa e não consigo me desligar. Faço mestrado e pensei em desistir porque não estou conseguindo conciliar, de tão cansada. A gente não tem tempo para sentar e comer direito”, relata.
“Eu só queria me despedir do meu marido”
Há pouco mais de uma semana, a dona de casa Jéssica César, moradora de Goiânia, perdeu o marido, vítima de Covid-19. Gean ficou internado por quase uma semana na UTI tratando a doença, mas não resistiu e morreu no hospital. Para evitar transmissão da doença, o caixão foi lacrado.
Cinco dias após a morte do marido, o portal Notícias Goiás também conversou com Jessica e ela comentou como tem sobrevivido a esse momento.
“Ele era uma pessoa muito alto-astral. Desde que começou a pandemia, se cuidou, evitou sair, não foi mais nos avós e mãe dele, mas infelizmente aconteceu isso”, conta.
Jessica diz ainda que “a ficha não caiu”.
“Eu só queria me despedir do meu marido. Não consegui vê-lo por dias porque estava isolado no hospital e nem depois dele morto pude dar um último adeus. É muito triste. Sentimento doloroso mesmo”, comentou.