A delegacia para um policial civil novato de Goiás representa mais do que seu local de trabalho. Tornou-se também um lar improvisado já que, ao receber um salário baixo, ele se vê sem condições de arcar com despesas como aluguel, luz, gás, água e comida em cidades distantes de sua residência de origem.
Após cumprir seu expediente, o agente ou escrivão iniciante continua na delegacia. Usa a cozinha e o banheiro do distrito policial. Para dormir, recolhe-se a um alojamento ou a uma sala onde estão seu colchão, suas roupas e outros pertences. Todos os dias da semana.
Essa é a realidade para um grupo entre os exatos 397 agentes e escrivães substitutos da Polícia Civil de Goiás, que tomaram posse do cargo no ano passado. Seu salário base inicial é de R$ 1.500,00.
“Eu não conseguiria continuar a trabalhar como policial se não estivesse morando na delegacia”, afirma escrivão X, nomeado para uma delegacia na região de norte de Goiás, a mais de 500 km distância da capital, onde ele morava.
Os policiais ouvidos pela reportagem não terão reveladas identidades nem as cidades onde trabalham.
“Eu divido uma sala com outro colega. Outros três dormem em outra sala. Não temos privacidade. Os colchões foram dados por um outro colega, que já mora na cidade há mais tempo.” Os agentes estendem os colchões no chão da sala de espaço exíguo e lá dormem.
“No meu emprego anterior, eu recebia R$ 6.000 brutos. Eu escolhi a carreira de policial pela estabilidade, mas também porque eu gosto do serviço”, afirma X.
A policial Y também está distante de casa, quase 600 km: “Durante nosso curso de formação, nos disseram que nós seríamos nomeados para cidades próximas do nosso local de origem, mas não foi isso que aconteceu”
A agente divide um quarto no alojamento da delegacia da cidade onde trabalha.
“Esse é um alojamento temporário para os policiais que fazem os plantões de 24 horas. Só que no meu caso virou permanente”, diz Y.
“A rotina policial já estressante é por si mesma. Minha qualidade de vida caiu muito desde que começou a atuar como agente. Imagina passar quase todo o tempo no local onde você trabalha? Praticamente, não há descanso verdadeiro, pois você vive o cotidiano da delegacia, mesmo quando não se estar trabalhando”. Y diz cogitar em deixar ser de agente policial goiana quando passar em um novo concurso.
Governo aumentou tempo de carreira
Anteriormente, o grau inicial da carreira de um policial civil goiano era o posto de terceira classe, cujo salário gira em torno de R$ 3.600,00.
Com uma mudança na legislação, o governador Marconi Perillo (PSDB) realizou em outubro de 2016 um concurso para policiais civis, com um novo grau inicial na categoria: os agentes e escrivães substitutos, cujos salários-base (sem contar gratificações) são inferiores a qualquer outro policial civil no país (veja infográfico).
“O governo não criou vagas novas, ele remanejou as vagas existentes na terceira classe. E aumentou de três para quatro anos o período de estágio probatório. Ou seja, esse servidor terá que esperar todo esse período para ter direito a mudar de classe e a um aumento salarial efetivo”, afirma a vice-presidente do Sindipol-GO (Sindicato de Policiais Civis de Goiás), Keithe Amorim de Souza.
Assim, o tempo necessário para um policial civil para chegar ao topo da carreira passou de 20 anos para 24 anos. “Eles podem chegar à aposentadoria sem atingir o grau máximo.”
A Cobrapol (Confederação Brasileira de Trabalhadores Policiais Civis) entrou no STF (Supremo Tribunal Federal) com uma ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) para derrubar a alteração que permitiu a criação dos cargos de agentes e escrivães substitutos, com salários reduzidos.
“A lei estadual não acrescenta um único novo cargo ao efetivo da Polícia Civil, se limitando, tão somente, a um manejo legislativo, com o único objetivo de diminuir a remuneração dos policiais civis, e assim reduzir os gastos do governo do Estado de Goiás com a segurança pública”, lê-se na petição da Cobrapol, que começou a tramitar no STF em novembro de 2016. O relator do caso é o ministro Celso de Mello.
“As condições de trabalho desses policiais são de total precariedade, muitos estão passando dificuldades materiais e há os que já desistiram e pediram exoneração do cargo”, afirmou a vice-presidente do Sindipol-GO. “Uma boa parte dos policiais alugaram casas em regiões peiféricas das cidades ou moram de favor em casa de parentes. Alguns recebem ajuda material de colegas mais antigos, como fogões.”
O sindicato informa estar levantando o número exato de policiais novatos que moram nas delegacias. A Secretaria de Segurança Pública reconhece que há policiais nesta situação, mas diz se tratar de um “número reduzido” (veja mais abaixo).
“Para dobrar esse salário atual, os policiais têm que trabalhar horas extras pagas pela AC-4 (Ajuda de Custo nº 4). Só que há um aspecto: eles teriam que realizar a proeza de trabalhar todos os dias da semana, sem qualquer descanso. É humanamente impossível.”
Estado-chave para o crime organizado
Palco de três rebeliões em seu maior complexo prisional, que resultaram em nove mortes, na primeira semana deste ano, Goiás é um Estado-chave para as facções criminosas do país.Localizado na região central do Brasil, essencial em termos logístico para distribuição de drogas e armamentos, Goiás tornou-se a “menina dos olhos” do PCC (Primeiro Comando da Capital), que implementou uma política agressiva de arregimentação de novos membros.
“Hoje o policial civil de Goiás trabalha acima das suas capacidades para dar conta de seu trabalho”, disse o policial Z. “A minha delegacia está ligada a outras seis delegacias localizadas em outras cidades. E nós só temos uma viatura para dar conta do serviço de todos esses lugares”.
Outro lado
Ao entrar em contato com a SSP (Secretaria da Segurança Pública), que por sua vez, indicou o diretor-geral adjunto da Polícia Civil, Marcelo Aires, para se pronunciar sobre o assunto.
“Nossa intenção é que os policiais recebam a melhor remuneração possível e esforços estão sendo feitos neste sentido”, disse Aires. Questionado sobre o valor pago aos novos policiais, ele afirmou que o governo teve que fazer um concurso público com salários menores para amenizar o déficit de policiais civis no Estado.
“Goiás, assim como outros Estados do país, vive uma crise econômica. À medida, que cenário de arrecadação for melhorando, com certeza, serão tomadas medidas para melhorar os salários não só dos novos policiais, mas de todos.”
Aires informou que foi recentemente aprovado um auxílio-alimentação no valor de R$ 500, e os agentes e escrivães que foram nomeados para atuarem em cidades localizadas no entorno do Distrito Federal (região de forte atuação de facções criminosas), também recebem um valor extra de R$ 500.
“O número de policiais que estão nesta situação de terem que dormir em delegacias é bastante reduzido. Também é pequena a quantidade daqueles que tomaram pose e depois pediram exoneração”, disse Aires. Ainda de acordo com delegado, essa situação não atrapalha o desempenho dos policiais nem afeta a questão da segurança das delegacias.
O governo de Goiás pretende publicar novo edital para concurso de policiais civis no mês de fevereiro. Serão 550 novas vagas.
Fonte: UOL Notícias