sábado - 23 - novembro - 2024

Polícia e Vaticano investigam acusação de assédio e abuso sexual contra arcebispo de Belém

Quatro ex-integrantes do Seminário São Pio X formalizaram denúncia ao Ministério Público em agosto deste ano acusando Dom Alberto Taveira Corrêa de usar suposta terapia para ‘curar’ a homossexualidade como pretexto para tocar seus corpos nus e promover abusos como testes à ‘tentação’ do sexo

PARÁ – 2020/BELÉM – POLITICA – Na foto acerbispo dom Alberto Taveira que está sendo denunciado / Fotos de arquivo FOTO TARSO SARRAF

Um escândalo silencioso ronda as missas nas numerosas e sempre cheias igrejas de Belém, capital católica, de acordo com o último censo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010, 860.000 do 1,39 milhão de habitantes da cidade declaravam-se dessa religião, onde anualmente acontece o Círio de Nazaré, procissão religiosa que é uma das maiores manifestações de fé cristã do mundo com a participação de milhões de pessoas do Brasil inteiro. Em agosto passado, quatro ex-estudantes do tradicional Seminário São Pio X, em Ananindeua, na região metropolitana da capital do Pará, formalizaram no Ministério Público acusações de assédio e abuso sexual contra o arcebispo metropolitano, Dom Alberto Taveira Corrêa.

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continuação da matéria…

Os fatos narrados aos promotores, que pediram à Polícia Civil a abertura de um inquérito que corre sob segredo de Justiça, teriam acontecido há pelo menos seis anos atrás, em 2014, e também em anos anteriores, enquanto os jovens estudavam para tornarem-se padres ou estavam em processo de desligamento do seminário. Todos tinham entre 15 e 20 anos de idade quando os fatos narrados por eles teriam acontecido. A denúncia também foi encaminhada internamente na Igreja Católica. Uma missão apostólica, espécie de comissão de investigação prevista dentro do Direito Canônico, esteve em Belém neste semestre, a mando do Vaticano e ouviu todos os envolvidos, mas até o momento nenhuma conclusão foi tornada pública.

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O EL PAÍS entrevistou na semana passada na capital Belém dois dos quatro denunciantes. Um deles,que não quis se identificar e chamaremos de A., hoje com 26 anos, conta que começou a ser assediado pelo arcebispo com 15 anos de idade, ainda antes de entrar para o seminário, e foi abusado sexualmente quando estava com 18, em meio a um processo de expulsão do grupo de estudantes e à suposta ameaça da autoridade máxima da Igreja no local de “contar tudo” para a família dele. O outro, que chamaremos de B., tem 28 anos atualmente, e diz que começou a ser assediado pelo padre com 20 anos, mas conseguiu afastar-se dele antes de sofrer abusos físicos.

A reportagem também teve acesso ao teor do que foi contado na denúncia pelos outros dois jovens. Um deles, a quem chamaremos de C., com 16 anos na época dos fatos narrados, foi quem dos quatro teria sofrido as piores violências, ficou traumatizado e chegou a tentar tirar a própria vida após deixar o seminário. As histórias que os quatro denunciantes contam descrevem um comportamento metódico do arcebispo para identificar jovens tidos como homossexuais por ele (com ou sem razão), ganhar a confiança deles como uma figura paterna, atrair para sua casa com o pretexto de ajudá-los a se livrar de sua homossexualidade, assediar e por fim cometer os abusos, passo a passo.

Procurado pela reportagem, Dom Alberto Taveira Corrêa preferiu não conceder uma entrevista sobre o caso. Em resposta, a arquidiocese indicou um vídio e nota divulgada pelo arcebispo sobre o assunto no início do mês, antes das e investigações contra ele serem de conhecimento geral na cidade. Durante uma missa na Basílica no início de dezembro, Dom Alberto surpreendeu os fiéis presentes ao tomar a palavra e falar sobre o caso, ainda que de forma velada. “Deus me deu coragem para furar o olho do escândalo, o escândalo que estava sendo montado e Deus nos deu a graça de passar na frente”, afirmou na ocasião. “Se alguém por ventura, por ação do demônio, pensasse em acabar com a Igreja Católica e a Igreja de Belém, enganou-se radicalmente”, disse sob aplausos.

Nas redes sociais, existe uma hashtag em seu apoio. Dias antes o arcebispo havia divulgado um vídeo nos canais oficiais da Igreja onde dizia ser alvo de “acusações de imoralidade”. “Digo a vocês que recebi com tristeza, há poucos dias, a informação da existência de procedimentos investigativos com graves acusações contra mim, sem que eu tenha sido previamente questionado, ouvido ou tido qualquer oportunidade para esclarecer esses pretensos fatos postos nas acusações”, diz no comunicado. “Reforço estar totalmente disponível às autoridades, tanto as eclesiásticas como as civis. (…) Adianto que tudo está sendo acompanhado adequadamente pela Santa Sé.”

No mesmo dia, 5 de dezembro, o arcebispo enviou uma carta assinada aos padres e diáconos. “Fui acusado de crimes de ordem moral, sem que me tenha sido dada a oportunidade de ser ouvido. Foram denúncias enviadas à Santa Sé, que provocaram uma Visita Apostólica, encerrada nesta semana; foi instaurado um processo em curso junto às autoridades civis”, diz na missiva em papel timbrado da Arquidiocese. “A iminente divulgação em mídia nacional, ao que tudo indica, causará danos irreparáveis à minha pessoa e provocará um profundo abalo à Igreja”, afirma.

Ao que tudo indica, ele temia que as informações sobre a investigação sobre ele saíssem numa reportagem da Rede Globo, algo que acabou não indo ao ar até a publicação desta reportagem. “Tenho clara consciência da improcedência das acusações que me são feitas, sendo por agora obrigado a aguardar os procedimentos investigativos das autoridades civis, que correm em segredo de justiça. Como não poderia deixar de fazer, constituímos advogados para acompanhar o processo”, diz na carta. “Asseguro-lhe a minha tranquilidade quanto a tudo isso, estou nas mãos de Deus, como todos devemos estar sempre, na certeza de que nele está a solução para esta situação, que eu nunca poderia imaginar de passar”, afirma em outro trecho pouco antes de despedir-se “com o coração cheio de dor e esperança”.

Orientação espiritual

Os quatro denunciantes afirmam que aceitaram participar de sessões particulares de orientação espiritual com Corrêa em sua casa em momentos e por motivos distintos, mas que a prática era muito comum entre os internos do seminário. Eles dizem que desde que chegou a Belém, em 2010, Dom Alberto frequentava o seminário com regularidade e era muito atencioso e acessível aos estudantes. “Teve sábado pela manhã que eu cheguei lá na casa dele, tinha fila de meninos para passar pelo atendimento”, contou B. à reportagem. “Era colocado como uma coisa normal. Aí acho que ele ia sentindo a abertura, vendo até onde conseguia chegar, testando a gente…”, diz ele, que teria começado a ser assediado por Dom Alberto no início de 2013, após ter sido descoberto pela direção do seminário em um relacionamento amoroso com um colega e ter sido expulso de lá, aos 20 anos. “Eu já tinha passado pela orientação particular com ele antes, mas tinha sido tudo muito superficial, eu não dava abertura. Quando fui expulso, procurei Dom Alberto e perguntei se ainda havia esperança para mim. Ele disse que tinha um caminho, mas que eu tinha que me abrir ao método de cura espiritual dele”, diz B.

Para tanto, os ex-seminaristas ouvidos pela reportagem contam que o arcebispo usava o livro A batalha pela ‘normalidade’ sexual e homosexualidadee (Editora Santuário, 2000), do psicólogo holandês Gerard Aardweg, com cuja cópia presenteava estudantes. O objetivo desta orientação espiritual seria ajudar os jovens a livrar-se da homossexualidade e tentações sexuais de toda a natureza, mas na prática não era o que acontecia. “Voltei para a primeira sessão e começou: queria saber se eu me masturbava, se eu era ativo ou passivo, se eu gostava de troca-troca, se eu assistia pornografia, quando eu me masturbava o que eu pensava… achei estranho mas achei que era o método dele”, diz B., de 28.

Depois de algumas sessões dessa natureza, cerca de cinco, ainda em 2013, o ex-seminarista diz que encontrou em uma missa na cidade um amigo que ainda estava no seminário, e descobriu que o ex-colega estava passando pela mesma coisa. “Aconteceu com ele uma situação parecida com a minha que culminou em uma ameaça de expulsão, e o arcebispo aproveitou e estava fazendo com ele a mesma coisa que estava fazendo comigo, só que já um passo a frente. Ele me confidenciou que foi obrigado a ficar nu com o arcebispo, tocar no corpo dele, se deixar tocar”, diz. Após essa conversa, e assustado com o rumo que o “tratamento” vinha tomando, ele conta que deixou de ir aos encontros marcados e afastou-se do arcebispo. B. já estava sem esperanças e sem a certeza de querer voltar ao seminário e com a perspectiva de cursar uma faculdade. Pouco tempo depois o amigo que encontrou na missa também deixou o Pio X. Estava lançada a pedra da denúncia que seria feita anos depois, apenas agora em 2020, depois que mais dois ex-seminaristas juntaram-se a eles no ano passado.

O documento a que o ex-seminarista se refere é uma diretriz lançada no ano passado que estabelece uma espécie de lei dentro do Direito Canônico com mecanismos e regras claras para que denúncias ou suspeitas de abuso sexual cometidas por membros da Igreja Católica sejam investigadas internamente, compartilhadas com autoridades civis e punidas. O regramento possui 19 artigos e trata de delitos sexuais praticados por membros do clero, que não tem a opção de não se submeter a ele. Internamente, a denúncia foi apresentada primeiro a autoridades eclesiásticas no segundo semestre do ano passado e às autoridades civis apenas neste ano. “Achávamos que não ia dar em nada, fomos atrás das autoridades civis e foi quando aconteceu essa visita apostólica”, diz o hoje universitário. “Nós confiamos no papa Francisco e no esforço que ele faz para mudar as coisas que estão erradas na Igreja”.

Questionado pela reportagem, o Ministério público do Paráá enviou uma nota em que informa ter recebido “denúncias de possíveis situações de abuso em relação ao caso citado”, diz o texto enviado pela assessoria de imprensa do MP-PA. “As denúncias foram distribuídas aos Promotores de Justiça com atribuição na matéria, que requisitaram a abertura de inquéritos policiais que estão sendo acompanhados pelo Ministério Público. A instituição aguarda a conclusão desses procedimentos para a adoção das medidas legais cabíveis na esfera penal e cível. Os procedimentos policiais tramitam sob sigilo”.

Dom Alberto Taveira Corrêa está com 70 anos de idade. Chegou a Belém como arcebispo, a maior autoridade na Igreja Católica no local, em 2010. Antes havia sido o primeiro arcebispo metropolitano de Palmas, no Tocantins, função que exerceu por 14 anos a partir de 1996. Já foi também bispo-auxiliar de Brasília e começou no sacerdócio em 1973 em Belo Horizonte, onde atuou como reitor do seminário local. “Bom dia Aiuri, a paz”, diz a resposta do pedido de entrevista com Corrêa enviada à assessoria de imprensa da Arquidiocese Metropolitana de Belém. “No momento não podemos agendar entrevista com Arcebispo. Por orientações da justiça, devido ser uma ação investigativa em curso em sigilo, nos impossibilita de atender seu pedido. Até um segundo momento, continuamos apenas o que consta em nossa página mesmo.”

Apesar de tudo que contaram ter passado dentro da Igreja Católica, nenhum dos dois ex-seminaristas que conversaram com reportagem afirma ter perdido a fé. “Hoje eu frequento. Escolho uma Igreja afastada onde ninguém me conhece, levo minha Bíblia e participo da missa. Penso na vida, rezo, me benzo e vou embora quietinho”, relata B.

LEIA O RELATO DE UM DOS DENUNCIANTES


Ex-seminarista denunciou arcebispo de Belém por abuso sexual
TARSO SARRAF / TARSO SARRAF
  • “Não sei por que aceitei ser submetido a tudo isso. É uma construção, você fica muito fragilizado, preso àquilo”

No relato abaixo, um dos quatro ex-seminaristas que fez a denúncia ao MP e às autoridades eclesiásticas, hoje um estudante universitário de 26 anos, conta sua história e fala sobre a relação com a Igreja Católica, sua religiosidade e sobre o assédio e abuso sexual do qual afirma ter sido vítima por parte do arcebispo metropolitano de Belémm, dom Alberto Taveira Corrêa.

“Minha família é muito religiosa e cresci frequentando a igreja. Aos 10 anos de idade já era coroinha e passei a me interessar muito pelas questões sacerdotais. Minha vida sempre foi escola, casa e paróquia. Quando eu tinha 14 anos, todo os dias estava na igreja e participava de muitas atividades lá. Em 2010, eu já tinha 15 anos, dom Alberto chegou a Belém. Eu o conheci logo no começo do ano na paróquia em que eu trabalhava. Estava organizando a liturgia e participei de uma cerimônia do lado dele. Após o final, ele me chamou num canto da sacristia e perguntou se eu tinha desejo de ser padre. Conversamos um pouco, ele escreveu o número dele em um pedaço de papel e disse ‘Me ligue, eu vou viajar para Roma e quando eu voltar você me liga para a gente conversar’. Guardei o número e não liguei. Passou o tempo e voltei a encontrá-lo em uma missa em agosto em outra igreja. Ele me cobrou por não ter ligado para ele. No mês seguinte, e a essa altura eu já tinha feito 16 anos, o encontrei de novo em outra igreja. Ao final ele me cumprimentou e perguntou o que eu ia fazer. Respondi que ia para casa. ‘Então vamos comigo na minha residência para jantar’, disse ele. ‘Tá bom, eu vou’, respondi.

Do jantar participaram outras pessoas, que estavam hospedadas no palacete dele, e depois da refeição ele me chamou no escritório dele. Pediu para eu me apresentar de novo, falar da minha família e o que eu achava de ser padre. Perguntou como estava o colégio, se eu estava namorando, se tinha muitos amigos. Disse que ainda não tinha tido nenhuma namorada e que tinha poucos amigos, sempre fui muito sozinho mesmo. Aí ele já perguntou se eu sentia atração por mulher ou por homem. Fiquei surpreso com a pergunta, acho que ainda mais porque naquele momento da minha vida eu não sabia a resposta, estava confuso. Também porque era estranho ter uma conversa daquela com um homem na casa dos seus 60 anos de idade. Ele insistiu, disse que era uma questão importante. Aí ele do nada me perguntou: ‘você se masturba?’. Fiquei chocado, constrangido, assustado. Ele percebeu, mudou de assunto e encerrou o papo. Me mandou procurar um outro padre que é com quem eu ia começar os encontros vocacionais antes de entrar no seminário.

No primeiro semestre do ano seguinte cheguei a ter uns três outros encontros reservados com o arcebispo, que ele marcou, enquanto me preparava para entrar no seminário. Sempre naquela pegada, cada vez mais aberta: falando sobre minha sexualidade, masturbação, pornografiaa, que tipo de pornografia eu gostava… e eu sempre muito fechado. Ele ficava bravo, dizia que eu tinha que me abrir mais, aquela coisa. No final do ano, quando a turma que iria entrar no seminário em 2012 estava para ser definida, tive um novo encontro com Dom Alberto. Ele me disse que o padre tinha me avaliado mal, que me achava muito fechado, mas que ele achava que o seminário era o lugar certo para corrigir esse tipo de coisa e no final eu recebi a carta-convite para ingressar.

Comecei no Seminário Pio X no início de 2012 com 17 anos de idade. Minha cabeça estava um caos. Sem o apoio de toda a família na minha decisão, saí de casa menor de idade, não estava bem resolvido em vários aspectos e fui para o internato do seminário. Lá o contato com o mundo é muito restrito. Não tem computador, não tem televisão… celular podia ter, mas só para uso no quarto, cada um tem seu próprio quarto. De qualquer forma também não tinha sinal. Era muito difícil conseguir comunicação com o mundo de fora. No primeiro ano, nós não saímos nem para visitar nossas famílias. Elas podem ir lá ver a gente apenas um vez por mês. Ficamos lá, uma espécie de um convento com o claustro, o pátio no meio. Anexo, fica o prédio do seminário principal, para quem já passou por esse ano de entrada.

Durante muitos meses eu não fiz os atendimentos espirituais com o bispo na casa dele. Após alguns meses de seminário, chegou a minha vez de ir passar o final de semana na casa do arcebispo. Tinha escala para isso e todo sábado e domingo ia uma dupla de internos do seminário. Chegávamos na casa dele, e ele ou um ajudante apresentava a agenda do final de semana e a hora em que ele ia conversar conosco a sós. Quando acabavam os compromissos do dia e voltávamos para a casa dele, sempre tinha essa reunião. No meu caso, neste primeiro final de semana, minha “sessão” foi à noite. Eu estava em um quarto de hóspedes lá embaixo, no piso inferior, recebi uma chamada no quarto, era ele e eu subi para nossa conversa. Cheguei lá e fiquei sozinho com ele no quarto. Disse que eu era gay, enumerou lá uns episódios do seminário, e voltou ao mesmo assunto de sempre: pornografia, se eu tinha atração por alguém do seminário, e por aí vai… terminou o esculacho psicológico e fui dormir. Nesse ano ainda passei mais um final de semana com ele, no segundo semestre, e no começo de 2013 fui para o edifício maior do internato, com 18 anos.

Depois de um tempo, um colega seminarista se apaixonou por mim. A gente ficou muito amigo, muito próximo, e ele se apaixonou… no começo eu resisti, não sabia nem se eu era mesmo homossexual, mas acabei me envolvendo e tendo um relacionamento com ele. Depois de uns meses, no final do primeiro semestre, virou um escândalo. Colegas flagraram a gente junto e contaram para todo mundo. A gente ia sair de férias no final daquela semana, lembro bem. A gente sabia que ia ser expulso e não ia voltar para o próximo semestre. Resolvi chamar dom Alberto e pedir para conversar com ele. Perguntei o que ia acontecer, se era para eu levar todas as minhas coisas embora. Ele respondeu que não podia fazer nada, que era para eu ir para minha casa e aguardar.

Três dias depois recebi uma ligação do reitor, dizendo que tinha passado a situação para dom Alberto e que ia me levar para conversar com ele. Chegamos lá e os outros dois rapazes, o menino com quem eu estava tendo um caso e o outro com quem ele estava brigando e denunciou a gente, já estavam lá. Ele conversou com um por um. Eu fui o último. Todos foram embora e eu entrei para conversar com ele, que se mostrou preocupado e afetuoso. Falei tudo o que tinha acontecido para ele, e perguntei o que ia acontecer. Ele disse que não dava para eu voltar para a formação agora, que era para eu me afastar. ‘Então lhe proponho três coisas. Você não vai para casa para não dar bandeira lá, vamos achar uma paróquia para você ficar até a poeira baixar. Segundo, vamos fazer um caminho pessoal de construção e terceiro vou te encaminhar para uma terapia especial, com psicólogos. Eu concordei.

Nesse período de férias fui lá passar o final de semana com ele de novo. Foi aí que começou o tratamento espiritual propriamente dito. Consiste primeiro em tratar a homossexualidade como uma doença que tem curaa, e ele é a cura para essa doença. Te dá o livro, que oferece uma espécie de embasamento teórico para o que ele faz, e submete você a sessões de terapia profissional que eu desconfio que servem para passar relatórios para ele depois e ajudá-lo a te domar melhor, porque ele sempre sabia de detalhes. Na primeira parte você tem que se assumir como homossexual. No meu caso isso aconteceu com muito assédio moral, tortura psicológica, com ele sempre muito agressivo, gritando e batendo na mesa, falando coisas horríveis e me colocando em uma posição inferior desde que começaram os encontros. Fora as ameaças, sofri muitas ameaças, eu não acreditava no pesadelo que estava vivendo naquele momento. Aí tive que admitir, mesmo sem saber se era mesmo homossexual, essa questão sempre foi uma confusão muito grande na minha cabeça. Uma hora eu disse que era, levou várias sessões para eu admitir.

Feita essa confissão, ele começa a segunda parte do ‘tratamento’. Intensifica as ameaças exigindo sigilo absoluto de tudo. A corda sempre estoura para o lado mais fraco, quem fica para o final da novela sempre chora, ele usava esse tipo de frase de efeito. Não podia contar nada para ninguém. No meu caso, ele fazia o que queria comigo. Chegou a me ameaçar de contar para a minha família o que estava acontecendo. Ficava me xingando enquanto abusava de mim. [Me chamava de] bicha, veado, esse tipo de coisa, e dizia que se eu não melhorasse, não obedecesse para sarar, ele ia contar tudo pra minha família, ia contar para minha mãe tudo o que eu era e tinha feito.

Tem essas sessões de tortura psicológica, aí começam os exercícios de ‘curar a nudez’, que era ficar os dois nus juntos trancados no quarto, algumas vezes com rezas em lugares específicos do seu corpo… ele dizia que um homossexual não conseguia ficar sem roupa na frente de outro homem nu, então que fazer esse exercício era importante até conseguir resistir. Algumas vezes eu achei que ele ia me beijar, chegou a pegar no meu pênis tentando uma ereção minha, fez eu me masturbar na frente dele…

Não quero entrar em mais detalhes, já contei tudo várias vezes para o pessoal da Igreja, polícia, ministério público, agora entrevista… É muito doloroso falar disso tudo. Passei por essa provação de julho a outubro de 2013, foram cerca de dez encontros, dois ou três por mês. Acabei ficando em casa nesse período, e disse que estava para ser enviado para um estágio em uma paróquia.

Em outubro fui mandado como ajudante do padre a uma paróquia de fato. Sete meses depois voltei ao seminário como aluno interno, conforme ele havia prometido, e um ano e meio depois de ter saído pela primeira vez, em dezembro de 2014, fui embora de vez. Eu tinha ficado revoltado, arrumava muita confusão e não me adequei mais ao internato. Nessa época já não me encontrava mais com dom Alberto. Hoje não sei exatamente por que acabei aceitando ser submetido a tudo isso. É uma construção, você fica muito fragilizado psicologicamente, preso àquilo. Chega um determinado momento em que você sabe o que vai acontecer e vai mesmo assim, se sente obrigado. Você chega a duvidar de si mesmo. Se você é ou não é, se você realmente é uma pessoa sórdida, que não presta, você chega a acreditar nele, fica completamente manipulado e transtornado. Ele te joga para baixo com muita psicologia, você perde a noção e o chão.

E junto ele oferece uma esperança, é ele quem decide se você continua na Igreja ou não, te chantageia, se coloca em uma posição de benevolência com você. Pelo menos no meu caso, tudo isso foi uma construção muito forte. Fiquei paralisado e demorei para perceber, elaborar tudo o que tinha acontecido”.

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